CLT DINÂMICA - DOUTRINA

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A CONCESSÃO DA GRATUIDADE JUDICIÁRIA


Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva

(Juíza togada do TRT/2ª Região)

Sumário. I – Introdução. II – Natureza jurídica. Gênero. Espécies. III – Simples declaração. IV – Destinatários do benefício. V- Despesas abrangidas. VI – Pedido a qualquer tempo. VII – Temas procedimentais. VIII – Isenção e advogado particular. IX – Possibilidades de writ. X – Faculdade ou imperatividade. XI – Conclusões.
I – Introdução

        A compaixão pelos injustiçados carentes tem sua própria história. A partir de incipientes lampejos na Babilônia de Hamurabi – aquele rei que, por volta de 1.700 a.C., compilou um conjunto de normas para agradar aos deuses - o patrocínio gratuito em juízo teve adesões ao passar por Grécia e Roma, ganhou fórmula sob o signo de Constantino e adquiriu consistência jurídica ao ser insculpida por Triboniano no código justinianeu, compatibilizado com o Digesto também sob esse aspecto. Entre nós, surgiu sob a égide das Ordenações Filipinas e mereceu, no início da República, a criação de um serviço público de assistência judiciária, até ser elevado ao status de garantia constitucional em 1934. Ausente na Constituição de 1937, retornou ao sistema jurídico nas subseqüentes (de 1946 e 1967), até consolidar-se em 1988 no inciso LXXIV do artigo 5º da vigente Carta Magna.  A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10.12.48, incluiu a assistência judiciária no patrimônio ético da humanidade, como meio eficaz de propiciar o acesso aos tribunais também àqueles que não têm recursos para pagar pelo manejo do braço estatal em defesa de seus direitos lesados.

        Há quem considere redundante a expressão “assistência judiciária gratuita”, ante a premissa de que a gratuidade seria uma qualidade inerente à prestação assistencial. Apontam-se as Leis 1060/50 (arts. , , ) e 5584/70 (arts. 14, 17 e 18), que se restringem à locução “assistência judiciária”. No entanto, a semântica jurídica admite variada sinonímia para o vocábulo assistência: auxílio, apoio, atenção ou cuidado obrigacional (conjugal, familiar, filial), representação (dos relativamente incapazes), legal (imposta por lei) ou processual (facultada ao terceiro juridicamente interessado na lide). Ainda que a sintética “assistência judiciária” compreenda, por si só, o favor legal de agir em juízo sem pagar o preço que o Estado cobra pelo exercício do direito de ação, a preocupação em evitar o pleonasmo revela certo preciosismo de linguagem. Tanto é que o próprio legislador enfatiza o sentido de gratuito justapondo, àquela expressão, o complemento “aos necessitados”, na Lei 1060/50; e a explicitação remissiva “a que se refere a Lei 1.060”, no art. 14, caput, da Lei 5584/70. O inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal faz o serviço completo: “o Estado prestará assistência judiciária integral e gratuita ...”.

        O que seria um apêndice retórico, pois, tem pelo menos uma virtude: a de não deixar dúvidas sobre a diferenciação a ser feita quanto às formulações associadas à assistência: marítima (socorro naval), litisconsorcial (conjunção de litigantes), pública (fomento ou ajuda oficiais), pericial (auxílio técnico à parte), ao crime (cumplicidade ou co-autoria), social (atendimento sociológico ou político aos excluídos) e assim vai. Como se vê, pode-se discorrer infinitamente sobre acidentes de linguagem, enquanto milhares de necessitados arcam indevidamente – às vezes por decisões teratológicas - com custos que sua condição social, em particular, e a carga tributária, no geral, permitiriam relevar por uma questão de justiça.

II – Natureza jurídica. Gênero.  Espécies

        A assistência judiciária, integral e gratuita, é uma das garantias institucionais do cidadão brasileiro. Sua concessão, um dever do Estado, vem sendo prevista no ordenamento jurídico infraconstitucional desde a Lei 1060/50, posteriormente complementada com a Lei 5584/70 e, a partir de 1988, assegurada no art. 5º, LXXIV, da Carta Magna. Apresenta natureza de direito público subjetivo e constitui-se em gênero que compreende estas espécies: assistência jurídica em sentido estrito, consistente em atividade extraprocessual predominantemente pedagógica, informativa, consultiva e orientadora, prestada por órgãos do Estado ou conveniados; assistência judiciária, realizada em função dos procedimentos processual ou administrativo, a expensas do Estado, em que se destaca a figura do advogado dativo; e a gratuidade de justiça, que compreende a dispensa de antecipação do pagamento das despesas processuais (no sistema processual civil), a isenção dessas despesas (pedida e deferível a qualquer tempo) e a dispensa provisória (diferidas para pagamento a final).
        As custas, em especial, têm natureza de taxa remuneratória de serviços públicos, de modo que a discussão quanto ao seu indeferimento não constitui matéria recursal própria do processo judicial, tendo em vista que o trânsito em julgado ocorre em sede administrativa, peculiaridade que, na lição de Hely Lopes Meirelles, equivale apenas a uma preclusão de efeitos internos, sem o alcance da coisa julgada judicial. E isso “porque o ato jurisdicional da Administração não deixa de ser um simples ato administrativo decisório, sem a força conclusiva do ato jurisdicional do Poder Judiciário” (cf. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo:Malheiros Editores, 2004, p.655). Esse é o motivo pelo qual a lesão é passível de reparação mediante mandado de segurança, independentemente da fase em que se encontre a tramitação do processo judicial originário.
        Nesse sentido, aliás, encontram-se redigidas as ementas transcritas a seguir:
(Omissis) Custas processuais. Município. Isenção de pagamento. Art. 790-A da CLT, acrescentado pela Lei 10.537/2002. As custas têm natureza de taxa remuneratória de serviços públicos pelo exercício da atividade estatal, que se inclui no rol de tributo. O fato gerador das custas é a condenação por sentença. Desse modo, a Lei nº 10.537/2002, de aplicação imediata, que acrescentou o art. 790-A da CLT, isentando os Municípios do pagamento das custas, pressupõe que o fato gerador alcançado pela isenção já tenha ocorrido. Assim, tratando-se de relação continuativa, ainda que tivesse ocorrido o trânsito em julgado da sentença, existindo o fato gerador para a isenção das custas, exclui-se o seu pagamento, não se tratando de retroatividade da Lei. Recurso conhecido e provido. (TST – RR 796 – 4ª T. – Rel. Min. Barros Levenhagen – DJU 23.04.2004) .
Agravo – Ação cautelar incidental. Trânsito em julgado do processo principal. Extinção da ação cautelar. Custas. Ônus da parte sucumbente na ação principal. Concessão do benefício da justiça gratuita. Orientações Jurisprudenciais nºs. 269 e 331 da SBDI-1 do TST – Nas ações cautelares incidentais, advindo o trânsito em julgado da ação principal, a ação cautelar deve ser extinta, sem julgamento do mérito, por ausência de interesse de agir. No tocante às custas processuais, a sucumbência tem relação direta com o julgamento da ação principal, isto é, se na ação principal o pedido do Autor da cautelar for procedente, na ação cautelar o ônus das custas deve ser suportado pelo Réu, sucumbente na ação principal. In casu, a Reclamada ajuizou ação cautelar incidental, tendo sido dado provimento ao seu recurso ordinário em ação rescisória, com o posterior trânsito em julgado, de sorte que a ação cautelar, em decisão monocrática, foi extinta, sem julgamento do mérito, por ausência de interesse de agir, sendo os Réus condenados a pagar as custas, não tendo sido concedido o benefício da justiça gratuita, uma vez que não houve solicitação nesse sentido, nem constava dos autos da cautelar declaração de pobreza ou de percepção de remuneração inferior a dois salários mínimos. Ocorre que, no presente agravo regimental, o patrono da causa, sem poderes especiais para tanto, firma declaração de insuficiência econômica dos Agravantes, para fins de concessão do benefício da justiça gratuita, o que viabiliza concessão do referido benefício e a isenção das custas, nos termos das Orientações Jurisprudenciais ns. 269 e 331 da SBDI-1, que prevêem, respectivamente, que o benefício da justiça gratuita pode ser requerido em qualquer tempo ou grau de jurisdição e que é desnecessária a outorga de poderes especiais ao patrono da causa para firmar declaração de insuficiência econômica para a concessão dos benefícios da justiça gratuita. Agravo regimental provido. (TST – AGAC 71043 – SBDI 2 – Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho – DJU 16.04.2004).
III – Simples declaração

        Durante algum tempo, posicionei-me no sentido de que não constituiria prova idônea de insuficiência econômica a declaração de pobreza que não fosse prestada expressamente sob as penas da lei e sem menção à responsabilidade pelo teor declarado. Tratava-se de posicionamento que me parecia defensável à época, mas que vim a reconsiderar por uma compreensão melhor do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, à luz do qual passei a entender como impositivo o reconhecimento de suficiência perante simples declaração de impossibilidade financeira para arcar com as despesas processuais sem comprometer o próprio sustento e a sobrevivência familiar.

        Há algum tempo já que me alinho à corrente jurisprudencial defensora de que o citado dispositivo assegura a prestação, pelo Estado, de assistência jurídica aos que comprovarem insuficiência de recursos, bastando, para o cumprimento da única exigência constitucional, seja apresentado requerimento específico e a declaração de miserabilidade, ainda que em formato mecânico e na petição inicial. A Lei 7115/83, aliás, já autorizava o reconhecimento da prova documental de pobreza consistente em simples declaração firmada pelo próprio interessado ou por procurador bastante.


        O que se observa, na prática, é que as exigências formais restritivas do direito, em geral, limitam-se a invocar como fundamento dispositivos infraconstitucionais, privilegiando-os de modo a subverter a hierarquia das leis e reduzir à ineficácia o inciso LXXIV do art. 5º da Carta Magna.


IV – Destinatários do benefício

        Segundo a Lei 10.537/2002, que acresceu à CLT o artigo 790-A, não mais é cabível a condenação, em custas processuais, da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias e fundações que não explorem atividade econômica, assim como o Ministério Público do Trabalho. A isenção prevista nesse dispositivo não alcança as entidades fiscalizadoras do exercício profissional.

        No mais, conquanto suscetível de ser concedido a qualquer das partes litigantes - porque não há vedação legal nesse sentido -, o benefício da gratuidade é personalíssimo, ou seja, intransferível e somente exercitável em nome próprio. Extingue-se com a morte do beneficiário, cabendo aos sucessores, que a ele fizerem jus, requerê-lo no momento oportuno.


        Além da pessoa natural, há uma controvertida tendência a se admitir a concessão do benefício também à pessoa jurídica em determinadas hipóteses, posto que o inciso LXXIV do artigo 5º da CF, a rigor, não faz acepção de classes. Nesse caso, porém, não bastaria a mera declaração sob as penas da lei. A requerente deve suplantar a presunção de auto-suficiência, que labora contra sua condição, promovendo efetiva demonstração da grave precariedade de recursos (insolvência ou falência). Sob esse aspecto, apresentam-se como possíveis beneficiários a firma individual, a micro e a pequena empresas (em que o prejuízo empresarial adquire contornos pessoais) e as entidades de filantropia, quando comprovadamente em crise econômico-financeira não fraudulenta. Às sociedades despersonalizadas (como o condomínio e o espólio), o benefício só poderia ser deferido se a constatação da insuficiência de recursos resultar de verificação do estado individual dos integrantes em cotejo com a situação financeira da entidade.


        Excluem-se, portanto, além das entidades sindicais, também as sociedades empresariais com fins lucrativos e cooperativas, nas quais o risco do empreendimento deve ser integralmente assumido pelos associados, sócios e cooperados.


V- Despesas abrangidas

        Consoante o art. 3º da Lei 1060/50, a justiça gratuita abrange as despesas de todos os atos processuais praticados pelo beneficiário, inclusive as diligência dos oficiais de justiça, assim como as publicações em jornal, a indenização às testemunhas e os honorários de perito e de advogado do assistido. Entende-se como sendo meramente exemplificativo o rol do citado dispositivo, tendo em vista a referência feita no subseqüente art. 9º a todos os atos do processo, até decisão final.

        O art. 35, do CPC, manda contar como custas as sanções impostas às partes em conseqüência de má-fé. Assim, o beneficiário da gratuidade também não precisa recolher as multas que lhe forem impostas, ainda que estabelecidas como condição para o processamento recursal.


        O art. 3º da  Lei 1060/50 não inclui no rol das despesas processuais o depósito recursal, destinado a garantir a futura execução do crédito trabalhista já reconhecido por sentença. A exceção corre por conta da falência. Por inteligência da Orientação Jurisprudencial nº 31 da SDI-1 do TST, porém, não se aplica às empresas em liquidação extrajudicial a Súmula nº 86, segundo a qual a falta de pagamento de custas ou de depósito do valor da condenação não implica deserção de recurso no tocante à massa falida.


VI – Pedido a qualquer tempo

        O estado de miserabilidade não admite preclusão. A roda da fortuna gira ininterruptamente e distribui riquezas, poder e sucesso a uns, ao mesmo tempo em que os retira de outros sem prévio aviso. Daí porque o pedido de assistência judiciária ou de isenção de despesas processuais pode ser requerido a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, no processo de conhecimento ou, extraordinariamente, na própria execução. Tanto a situação econômica que dá motivo ao pedido como a decisão que o concede são condicionadas pela cláusula rebus sic standibus, vale dizer, prima pela precariedade, não gera preclusão pro judicato. Ou, como já referido, não contêm matéria recursal própria do processo judicial, tendo em vista que seu trânsito em julgado ocorre em sede administrativa.

        O direito à justiça gratuita comporta eficácia para todos os atos processuais, em todas as instâncias, nos termos do art. 9º da Lei 1.060/50, inclusive quanto às ações incidentais na fase de conhecimento, assim como no processo de execução, recursos e rescisórias.


        Há presunção relativa de veracidade no requerimento de pessoa física, que obviamente se reporta à sua situação atual. O empregado recém-despedido pode até ter mantido um contrato trabalhista que lhe propiciava remuneração compensadora, mas a incerteza do estado de desemprego permite-lhe nivelar-se ao desfavorecido, ante a ausência de perspectivas quanto ao futuro, seu e da família, no contexto de uma dificuldade cada vez maior para o retorno ao mercado de trabalho.


        A possibilidade de requerer o benefício da gratuidade em fase de execução, com efeitos ex tunc, está amparada em prestigiosa jurisprudência (por exemplo, o julgado TRF/4ª Região, AI 2000.04.01.044849-4/SC, Rel. Juíza Virginia Scheibe, votação unânime, 5ª Turma, 21.08.00, DJ 13.09.00 p. 382). Dois são os fundamentos que afastam, nessa hipótese, a objeção de coisa julgada: 1) as custas são taxas administrativas e, portanto, não transitam em julgado; 2)  o benefício da justiça gratuita não se sujeita ao princípio da patrimonialidade (art. 591 do CPC), porquanto repercute no âmbito dos direitos preservados pela impenhorabilidade e previstos nos incisos IV e VII do art. 649 do CPC.  


        Nessa linha de raciocínio, a postulação da gratuidade, justificada pelas circunstâncias adversas da vida pessoal do requerente, não pode ser caracterizada como atuação em fraude à lei ou desvirtuamento da finalidade típica do benefício.


VII – Temas procedimentais 

        Em juízo de cognição sumária, o pedido do benefício pode ser decidido de plano, até porque é requerível a qualquer tempo. O deferimento assenta-se na presunção de veracidade contida na simples declaração de insuficiência de recursos. Em contrapartida, o indeferimento se faz igualmente possível, dada a limitação juris tantum daquela presunção, mas, precisamente por isso, gera a necessidade de prova da situação de miserabilidade. No entanto, a decisão por verossimilhança só é possível para a concessão. A negativa do pedido exige motivação fundada em prova nos autos, sem se olvidar que o encargo de impugnar o estado de necessidade de pessoa física é da parte impugnante, vedada a mera alegação, em razão da mencionada presunção legal. A fundamentação, ademais, ainda que sucinta, é imposição constitucional em qualquer hipótese (artigo 93, IX, da CF).

        Se a parte contrária impugna o pedido de assistência jurídica e não demonstra a impugnação, cabe considerar a hipótese de deslealdade processual. Não se trata de ver apenas se houve ou não prejuízo resultante do incidente, mas também o comprometimento do aparato judicial em matéria na qual, a rigor, o interesse é preponderantemente administrativo.


        O deferimento da gratuidade tem efeitos ex tunc, porque o pedido sempre se presume originado em situação preexistente, mas a revogação do benefício não opera retroativamente, ou seja, não afeta a validade dos atos praticados sem o recolhimento das custas processuais, tendo em vista que desconstitui situação jurídica superveniente e benéfica à parte mais fraca da relação processual.


        O bom senso recomenda, por razões práticas de celeridade e economia, que se a recusa do benefício na instância originária gerar a reiteração do pedido em recurso ordinário, seja privilegiado o direito de acesso ao duplo grau de jurisdição e diferida a exigibilidade do recolhimento das custas até que o tribunal ad quem se manifeste a respeito. Essa providência simples é suficiente para evitar os transtornos intermediários de um agravo de instrumento desnecessário, sendo certo que o despacho de processamento do recurso, determinado com a pertinente ressalva pela vara de origem, em nada compromete o juízo de admissibilidade que, por uma via ou por outra, seria promovido no tribunal.  


VIII – Isenção e advogado particular

        Compartilho do entendimento segundo o qual o patrocínio por advogado particular, no processo trabalhista, não constitui óbice à obtenção do benefício da gratuidade judiciária por seu cliente necessitado. O inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal não estabelece restrição discriminatória contra o exercício da atividade do advogado, profissional qualificado, pelo artigo 133 da Constituição da República, como indispensável à administração da justiça. Assim, o patrocínio por advogado particular não constitui impedimento à obtenção da assistência gratuita no juízo trabalhista, mas tão-somente aos honorários advocatícios.

        No artigo doutrinário “A assistência judiciária e os honorários advocatícios dela decorrentes na Justiça do Trabalho”, Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante afirmam que o art. 14 da Lei 5584/70 não pode ser interpretado como se tivesse excluído do processo trabalhista a Lei 1060/50. Das múltiplas razões que relacionam, destaco as ponderações seguintes: o texto do art. 14 não diz que na Justiça do Trabalho a assistência só será prestada pelo sindicato, interpretação restritiva que estaria em conflito com o progresso jurídico constatado desde Pontes de Miranda, segundo o qual "a escolha de advogado pela parte marca a evolução da justiça gratuita no Brasil" ("Comentários ao CPC/39", art. 67); o argumento de que na Justiça do Trabalho o advogado é desnecessário equivaleria, por exemplo, a dispensar a assistência médica a pretexto de que o doente pode automedicar-se; o remédio, no caso, estaria em se promover a coexistência de ambos os diplomas legais porque, consoante Gaetano Franceschini: “A defesa dos pobres deve ser igual à de seu adversário" (Il Patrocinio. Milano, 1903).


        Em suma, o pedido de isenção de custas pela concessão da justiça gratuita, indeferido por estar, o autor, assistido por advogado particular – com fundamento na presunção de suficiência econômica a despeito de declaração em contrário -, conflita com a faculdade atribuída ao hipossuficiente, no art. 1º. da Lei nº. 7.115/83, de oferecer declaração documental de pobreza mediante procurador bastante. Do fato de o trabalhador estar assistido por advogado particular (que em geral cobra seus honorários ao final da causa) não se extrai necessariamente que não esteja desempregado ou se veja imune a dificuldades econômicas que o impeçam de demandar sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. A penúria, embora socialmente estigmatizada, não representa uma condenação do hipossuficiente à própria sorte e tampouco um mecanismo de elitização da advocacia ou instrumento discriminatório na distribuição de um benefício social que a Constituição assegura indistintamente.


IX – Possibilidades de writ.

        No referente à matéria da concessão do benefício da gratuidade judiciária, o sistema erigido pela Constituição Federal de 1988 -- que obviamente se sobrepõe às restrições anteriores estampadas na Lei 5584/70 -- autoriza que se interprete mais flexivelmente a vedação contida no inciso II do art. 5º da Lei 1533/51, tendo em vista, particularmente, os aspectos e ponderações que passo a expor.

        A disposição contida no inciso II do art. 5º da Lei 1533/1951, bem como o entendimento sedimentado na Súmula 268 do E. STF, não apresentam caráter absoluto em sua aplicabilidade, permitindo a opção pela via mandamental em casos de demonstrada excepcionalidade, como se deduz dos tópicos extraídos do repertório do Código de Processo Civil e legislação processual em vigor (Theotonio Negrão e José Roberto F. Gouvêa – São Paulo:Saraiva, 2004, p. 1089 e ss.), transcritos a seguir:


A última ratio do verbete 268 da Súmula da Jurisprudência do STF [“Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado”] é a não impugnabilidade da decisão judicial, não cabendo distinguir entre coisa julgada formal e coisa julgada material” (STF – Pleno: RTJ 129/816 e RDA 175/96).
Todavia: “A jurisprudência deste STJ caminha no sentido de admitir a utilização de mandado de segurança para desconstituir sentença prolatada em processo que se desenvolve sem a citação da parte. A orientação, amparada na assertiva de que a viciada sentença então proferida, precisamente por não aperfeiçoada a angularidade da relação processual, não transita em julgado, exclui, por derradeiro, a incidência do enunciado n. 268 do excelso STF” (STJ-6ª Turma, RMS 8.807-SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 3.12.01, negaram provimento, v.u., DJU 6.5.02, p. 312). No mesmo sentido: STJ-4ª Turma, RMS 6.487-PB, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 24.9.96, deram provimento, v.u., DJU 4.11.96, p. 42.475).
Embora o impetrante não haja também recorrido, em alguns casos o mandado de segurança tem sido conhecido e concedido, em caráter excepcional (JTJ 158/260), ou porque impetrado contra decisão que, embora recorrível, era de natureza provisória (RJTJESP 64/268), ou porque a decisão impugnada exigia pronto e eficaz reparo, sob pena de se tornar inócua (RT 653/109, RTRF-3ª Região 5/212), ou porque, mais amplamente, constituía decisão teratológica (RSTJ 83/92, STJ-RT 715/269) ou de flagrante ilegalidade (v., p. ex., RSTJ, 95/53, JTJ 173/279, maioria).
Nessas hipóteses, os tribunais, geralmente, não aplica, nem a Súmula 267 do STF, nem a Súmula 268 (RT 593/81, 593/84, 628/179, RJTJESP 127/242, JTA 60/204, 61/138, 86/245, 89/356, 92/361, Bol. AASP 1.524/49, RBDP 51/158. No mesmo sentido: STJ-RJTJERGS 140/27 (caso em que o juiz vedou o acesso do impetrante à Justiça, mediante determinação ao distribuidor forense; v. CPC 40, nota 9 (mandado de segurança contra decisão do juiz que indefere a vista dos autos)”.
        Na mesma direção, encontra-se a ementa seguinte:
“Quanto se lê, no art. 5º, II, da Lei nº 1.533 que ‘não se dará mandado de segurança quando se tratar de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição’, há que se entender com a sua jurisprudência recente, que admite a medida quando o recurso não for aparelhado com efeito suspensivo e da mora puder resultar dano irreparável (Proc. RE S8.707-6´, 2ª T. rel. Min. Xavier de Albuquerque, v.u., decisão de 2.12.77)”.
        Nessa linha de raciocínio, ainda que a matéria específica tratada no mandamus (concessão do benefício da gratuidade judiciária em face do inciso LXXIV do artigo 5º
da Constituição Federal) foi ou esteja sendo submetida a reexame em sede recursal, mediante apelos próprios, o certo é que essa constatação não torna incabível a utilização concomitante do remédio heróico, ou seja, não se aplica a essa  hipótese o disposto no art. 5º, II, da Lei nº 1.533/51 ou a Súmula 268 do E. STF. A possibilidade de apreciação do objeto da ação mandamental se deve a que a denunciada violação de direito líquido e certo efetivamente já ocorreu, tendo-se em conta a expressa previsão do citado artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que utiliza em seu comando o modo imperativo (“o Estado prestará assistência judiciária e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”). Assim, a ilegalidade pode e deve ser reparada, com respaldo no comando constitucional.


        Apenas para maior compreensão da matéria, afigura-se óbvio que a parte final da referida Orientação Jurisprudencial nº 269 (“...desde que, na fase recursal, seja o requerimento formulado no prazo alusivo ao recurso”), conflita com a parte inicial (“O benefício da justiça gratuita pode ser requerido em qualquer tempo ou grau de jurisdição ...). Essa contradição, porém, resolve-se pela preponderância da norma legal já mencionada (§ 3º do art. 790 da CLT, na redação dada pela Lei nº 10.537, de 27.08.2002), segundo a qual é facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder o benefício da justiça gratuita a requerimento ou de ofício. Ora, a faculdade da outorga de ofício constitui disposição incompatível com exigências extralegais sine qua non de requerimento pelo interessado ou de limitação temporal para a oportunidade de fazê-lo.


        Em síntese, perante o disposto no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal, não se pode incluir a matéria referente à concessão do benefício da gratuidade da assistência judiciária integral no rol das pretensões fadadas à extinção do respectivo writ em face da tese pela qual a duplicidade de providências para a defesa do direito (impetração de mandado de segurança e recursos próprios) conduz à configuração da ausência de interesse processual diante da descaracterização do binômio necessidade/adequação da tutela jurisdicional postulada. O interesse processual se faz presente, no caso, pela excepcionalidade advinda dos motivos já elencados: flagrante ilegalidade; decisão teratológica; decisão de natureza provisória ou que exigia pronta e eficaz reparação, sob pena de tornar-se inócua (irreparabilidade do dano).


        Além do mais, a reparação da ilegalidade flagrante (como se configura na denegação do benefício em tela, com explícita ofensa ao mencionado artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal) permanece como direito inquestionável mesmo que tenha sido ratificada em decisões proferidas nos recursos utilizados. Precisamente para isso é que o ordenamento jurídico disponibiliza a ação rescisória (nas hipóteses em que já ocorreu o trânsito em julgado); e o mandado de segurança, apropriadamente denominado remédio heróico, nas demais situações em que se faz necessária a proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, contra a violação (ou justo receio de sofrê-la) caracterizada como ilegalidade ou abuso de poder e perpetrada por parte de autoridade, como expressamente previsto no art. 1º da Lei n. 1.533/1951.


X - Faculdade ou imperatividade

        O art. 790 da CLT (acrescentado pela Lei nº 10.737/2002), em seu § 3º, confere aos juízes a faculdade de conceder o benefício da Justiça gratuita, de ofício ou a requerimento, para aqueles que perceberem salário inferior ao dobro do mínimo legal ou declararem que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.

        Há evidente antinomia do dispositivo infraconstitucional com a redação do inciso LXXIV do artigo 5º da CF, que consagra a gratuidade judiciária como um dever do Estado - e não simples faculdade do magistrado. Desse confronto não remanesce dúvida quanto à prevalência da norma constitucional, que utiliza o modo imperativo do verbo: “O estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Ante a manifesta inconstitucionalidade, exclui-se a possibilidade exegética de se defender o poder discricionário do juiz para conceder ou negar um benefício assinalado, na Lei Maior, pelo imperativo categórico do dever.


        Do texto do art. 790, § 3º, portanto, só é dado extrair, como aptidão discricionária do juiz, a concessão ex officio da gratuidade.


        Nessa linha de entendimento destaca-se o esclarecedor julgado:


Justiça Gratuita. Direito da Parte e Faculdade do Juiz. Independentemente de estar assistido pelo sindicato, a isenção de custas é um direito a ser observado pelo juiz, se o interessado apresentou a declaração prevista na Lei, submetendo-se às penalidades do Código Criminal. A falsidade não pode ser presumida, por isso deve ser entendido que a faculdade dada aos juízes pelo parágrafo 3º do art. 790 da CLT é apenas aparente, uma licença legislativa, que deve ser interpretada sempre em favor do destinatário da Lei e não como um poder discricionário do juiz, sujeito ao seu humor de momento. (TRT 2ª R. – AI 00827 – (20040607970) – 9ª T. – Rel. p/o Ac. Juiz Luiz Edgar Ferraz de Oliveira – DOESP 26.11.2004).

XI – Conclusões

a) A prestação da assistência judiciária integral e gratuita é uma das garantias do cidadão, sendo dever do Estado a sua concessão a quem dela necessite. Está prevista no ordenamento jurídico infraconstitucional, antes mesmo do advento da Lei 5584/70, através da Lei 1060/50, e finalmente consagrado no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal;

b) a assistência judiciária apresenta natureza de direito público subjetivo e constitui-se em gênero que compreende estas espécies: assistência jurídica em sentido estrito, consistente em atividade extraprocessual; assistência judiciária, realizada em função dos procedimentos processual ou administrativo; e a gratuidade de justiça, que compreende a dispensa de antecipação, a isenção e a dispensa provisória do pagamento das despesas processuais;


c) é bastante, para o cumprimento da única exigência constitucional, seja apresentado requerimento específico e a declaração de miserabilidade, ainda que em formato mecânico. A Lei 7115/83 já autorizava o reconhecimento da prova documental de pobreza consistente em simples declaração firmada pelo próprio interessado ou por procurador bastante;


d) além da pessoa natural, a concessão do benefício é admissível também à pessoa jurídica, posto que o inciso LXXIV do artigo 5º da CF não faz acepção de classes. Nesse caso, a requerente deve suplantar a presunção de auto-suficiência, que labora contra sua condição, promovendo efetiva demonstração da grave precariedade de recursos (insolvência ou falência). Excluem-se, além das entidades sindicais, as sociedades empresariais com fins lucrativos e cooperativas, nas quais o risco do empreendimento deve ser integralmente assumido pelos associados, sócios e cooperados;


e) não se tratando de despesa processual ou de taxa, o depósito recursal não pode ser objeto de isenção. A exceção, por privilégio legal, refere-se às empresas em situação falimentar. Segundo a OJ-31/SDI-1 do TST, no entanto, não se aplica às empresas em liquidação extrajudicial a Súmula nº 86 daquela Corte;


f) o estado de miserabilidade não admite preclusão. O pedido de assistência judiciária ou de isenção de despesas processuais pode ser requerido a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, no processo de conhecimento ou, extraordinariamente, na própria execução; 


g) o bom senso recomenda que, se a recusa do benefício na instância originária gerar a reiteração do pedido em recurso ordinário, seja privilegiado o direito de acesso ao duplo grau de jurisdição e diferida a exigibilidade do recolhimento das custas até que o tribunal ad quem se manifeste a respeito. O despacho de processamento do recurso em nada compromete o juízo de admissibilidade que, por uma via ou por outra, será promovido no tribunal;  


h) o dispositivo constitucional tampouco estabelece restrição discriminatória contra o exercício da profissão de advogado, qualificada no art. 133 da Carta Magna. Logo, o patrocínio por advogado particular não constitui impedimento à obtenção da assistência gratuita em Juízo, mas tão-somente aos honorários advocatícios;


i) a disposição contida no inciso II do art. 5º da Lei 1533/51, bem como o entendimento sedimentado na Súmula 268 do E. STF, não apresentam caráter absoluto em sua aplicabilidade, permitindo a opção pela via mandamental em casos de demonstrada excepcionalidade ou teratologia;


j) há evidente antinomia do art. 790, § 3º, da CLT com a redação do inciso LXXIV do artigo 5º da CF, que consagra imperativamente a gratuidade judiciária como um dever do Estado - e não como simples faculdade do magistrado.


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