CLT DINÂMICA - DOUTRINA

Comissões de conciliação prévia
e crime de frustração de direito trabalhista.


Marcos Neves Fava1

I. Introdução. II. Definição do instituto das Comissões Prévias. III. Conceito do crime do artigo 203 do CP. Autoria e co-autoria do crime. IV. Enquadramentos fáticos. V. Conseqüências nefastas. VI. Conclusões.

I.    Introdução.


No último ano do século XX, inovou-se a processualística trabalhista brasileira, com a inserção ao corpo da CLT do inovador mecanismo de auto-composição dos dissídios individuais decorrentes das relações de trabalho conhecido por comissão prévia de conciliação, força da vigência da lei 9958/2000.


Ao longo dos meses de vigência da referida lei, muitas comissões foram instituídas, no âmbito dos sindicatos (predominantemente) e no interior das empresas (de forma mais escassa). É certo, pois, que muitos dissídios foram solucionados – ou tiveram sua instauração judicial dispensada – em razão desse novo espaço que se criou no bojo do ordenamento pátrio. É certo também que, de forma um elevadíssimo número de denúncias foram apresentadas em Juízo, como sustento ao pedido (incidental ou principal) de declaração de nulidade do acordo firmado na comissão. Ouve-se, também, alhures a existência de distorção do uso do novel sistema, em prejuízo do trabalhador.


A novidade, consistente em autorização legal expressa para a auto-composição, pode guardar potencial perspectiva de sucesso. Mostra-se um caminho inovador para a busca de soluções sem a intervenção do Estado, sem a demora que se tornou típica da prestação jurisdicional definitiva, exercitando-se a cidadania e o equilíbrio das forças sociais.


A prática quotidiana forense, no entanto, tem revelado que o mecanismo tem sido utilizado como meio de quitação – tentativa, ao menos – de dívidas contratuais, sem o pagamento dos valores devidos, cobrindo-se o resultado do “acordo” com o manto da eficácia liberatória geral. Tantas têm sido as denúncias, que a ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – instituiu grupo de estudos que deverá apresentar proposta de reforma da nova lei, a fim de adequar o bom princípio à eficácia que dele se espera.


O desvio de uso das comissões atrai conseqüências para as partes transigentes, com repercussão apenas inter alios, podendo culminar com a anulação da avenca. Fora desse universo, no entanto, provoca conseqüências de natureza criminal. Delimitá-las e buscar a identificação dos responsáveis é o objeto deste artigo.


II.    Definição do instituto das Comissões Prévias e utilização fraudulenta.

As comissões de conciliação prévia conceituam-se como organismos não estatais, originados em acordo ou convenção coletiva, instituídas no âmbito de sindicatos ou de empresas, compostas por representantes de empregadores e empregados, com o fito de conciliar os dissídios trabalhistas individuais.


A festejada lei 9958/2000 instituiu mecanismo de conciliação dos dissídios individuais, buscando torná-lo obrigatório e lhe atribuindo “eficácia liberatória geral” 3 quanto aos créditos do contrato de emprego. De forma absolutamente inovadora, o legislador inverte a prática jurídica ordinária de quitar-se apenas os títulos especificados no termo de pagamento, para considerar definitivamente (liberatória geral) pagos todos os créditos decorrentes da relação de emprego e cujos  títulos não tenham sido especificados por meio de ressalva expressa.


Rodolfo Pamplona Filho e José Augusto Rodrigues Pinto identificam4 que “tecnicamente trata-se de um processo de heterocomposição, uma vez que o resultado é perseguido por três sujeitos, sendo um deles alheio ao conflito de interesses dos outros dois”.


A terceira figura exibe-se necessária no processo em razão da indiscutível posição de submissão, de hipossuficiência do empregado frente ao empregador e a complexidade do ordenamento jurídico trabalhista. Diz-se correntemente que a legislação trabalhista é tão complexa que, para entendê-la é preciso que o trabalhador carregue um advogado embaixo do braço.


Três são, pois, as finalidades da  presença do conciliador no ato das tratativas em análise, a saber: incentivar a realização de acordo, equilibrar a desigualdade das partes, evitando a imposição da vontade unilateral do empregador, e esclarecer o trabalhador quanto aos limites do transacionado.


O desvio de finalidade das comissões de conciliação prévia constitui-se em afronta ao próprio instituto, em prejuízo ao trabalhador e em crime contra a organização do trabalho. Chama-se, aqui, de desvio qualquer meio de funcionamento da comissão prévia que vise a engodar o trabalhador, no percalço da chamada quitação de eficácia liberatória geral. O princípio físico da equivalência entre ação e reação pode ser metaforicamente recuperado, neste ponto, para que se aquilate a gravidade da participação dos membros da comissão prévia de conciliação, a partir da gravidade da conseqüência liberatória do acordo firmado extrajudicialmente.


Para que do trabalho da comissão retire-se a grave liberação geral do devedor quanto a todo e qualquer parcela decorrente do contrato de emprego, desde que não expressamente ressalvada, importa que a atuação dos conciliadores seja levada a cabo com as cautelas necessárias a não desvirtuar-se o mecanismo de conciliação legalmente previsto.


Conceituação do crime do artigo 203 do CP. Autoria e co-autoria do crime. 

Estatui o código penal brasileiro ser crime contra a organização do trabalho o ato de “frustrar mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho”5, atribuindo ao agente do crime a pena de reclusão de 1 mês a 1 ano e mais multa. Tipifica-se pela ação do agente com violência ou mediante fraude, para obstaculizar o acesso a direito previsto em legislação trabalhista. Necessária se faz a identificação do dolo no agente, o que consiste na clara e consciente intenção de levar a vítima á perda do direito que lhe é legalmente atribuído.


No plano da atuação mediante fraude, preciosa é a lição de Alberto Silva Franco, que a define como sendo “o expediente que induz ou mantém alguém em erro. É o enliço, engodo ou embuste que dá ao enganado falsa aparência da realidade”.6


Finalmente, o agente coincide com a pessoa que impede a realização do direito trabalhista, não se identificando de forma exclusiva com a figura do empregador. Ao contrário disto, Heleno C. Fragoso ensina que o crime pode “ser praticado por qualquer pessoa haja ou não relação de emprego com a vítima” 7.


A atuação concreta e ativa dos membros da comissão de conciliação prévia na entabulação de acordos fraudulentos pode caracterizar-se, portanto, como afronta ao regramento penal do artigo 203, constituindo-se em crime contra a organização do trabalho, na medida em que, extraindo-se quitação de pagamento inexistente (ou insuficiente), evidencia-se a perda do direito trabalhista legalmente assegurado.


Neste passo, note-se a seguinte decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal, em Habeas Corpus, cuidando do concurso formal entre os crimes dos artigos 203 e 299 do código penal:
“Falsificação de recibos de quitação de direitos trabalhistas e sua utilização, contra o empregado, na Justiça do Trabalho. Configura-se, no caso, concurso formal de crimes (os previstos nos artigos 203 e 299 do código penal), e não concurso aparente de normas penais.”8
A confecção de um termo de ajuste em comissão de conciliação que vise à fraude de direitos trabalhistas implicará, como visto, em violação ao artigo 203 do código penal e em afronta ao artigo 299  do mesmo ordenamento.

III.    Enquadramentos fáticos.

Postos tais parâmetros, perscrutemos enquadramentos fáticos do que foi até aqui chamado de desvio de finalidade da comissão de conciliação prévia, em exemplos retirados da prática forense ou de simples hipótese.


De início, o artigo 477 da C.L.T. não foi revogado pela lei em comento (a 9958/2000), resultando daí que a homologação do pagamento de verbas rescisórias a empregado que conte com contrato superior a um ano não pode ser feita em nenhum outro local, senão perante a Delegacia Regional do Trabalho ou o Sindicato da Categoria de Trabalhadores a que pertencer o empregado. Sem rodeios: não é função da comissão de conciliação prévia a homologação do pagamento de rescisórias.


Engodo, que surgiu, não de forma rara, no quotidiano forense do curto período de vigência da norma do artigo 625 da C.L.T., consiste  no pagamento das rescisórias perante a comissão – num dos casos que instruí, o pagamento não atingia, sequer, a totalidade do valor consignado pelo empregador no T.R.C.T.! – lavrando-se, então, um “termo de conciliação”, com referência expressa à eficácia liberatória geral do pagamento ali mencionado. Pagam-se, com isto, as rescisórias, sem, sequer, a verificação da integridade de tal pagamento, e, ao mesmo tempo, expande-se sua eficácia para além dos limites das verbas finais, quitando-se a integralidade dos créditos trabalhistas não ressalvados no termo de ajuste.


Evidente a fraude, prejudicando-se o empregado pela impossibilidade de vir a reclamar perante o Judiciário qualquer crédito pendente de seu contrato de emprego, ou mesmo algum decorrente da quitação das rescisórias, como se pode dar, por exemplo, com a multa do artigo 477 da Consolidação.


Desse mesmo referido fato, limitando-se, ainda, às rescisórias, outra prática tem sido o pagamento parcelado e a menor das verbas finais, com a quitação integral dos referidos valores – sem repetir-se a pretensa extensão dos efeitos da quitação à liberação “geral” dos créditos do contrato. Paga-se, assim, valor inferior ao confessadamente devido, atribuindo-se, no entanto, ao ato de quitação “ares de acordo”, com a amplitude de seus efeitos para além das verbas relacionadas no termo. Se o empregador não pode pagar integralmente as rescisórias, que não o faça, mas não é aceitável que, pagando apenas parte delas, venha a auferir documento que o libere da obrigação pelo pagamento das diferenças.


Outra prática já encontrada em reclamações trabalhistas coincide com a inversão dos papéis de demandado e demandante. O empregado é demitido, nada recebe, tampouco reclama, mas é convocado, pela comissão, para sessão de conciliação, imprimindo-se no termo de acordo, quando positiva a conciliação, o empregado como demandante e o rol de pretensões. A lei não proíbe que o empregador tome a iniciativa da conciliação, eis que o artigo 625-D apregoa que “qualquer demanda de natureza trabalhista” será submetida à comissão. Não está, pois, aí o ilícito, mas no fato de alterar-se a verdade dos fatos, identificando o convocado como se autor fosse. Trata-se de falsificação de relevante documento privado, que oculta a real iniciativa pela busca da intervenção da comissão prévia e, ainda, amplia o rol de pedidos do suposto demandante, visando-se, com isto, a legitimidade da chamada quitação com eficácia liberatória geral.


Até hoje, quando a Justiça do Trabalho já ultrapassou os cinqüenta anos de vida, não é fato raro encontrar-se empregados (e, às vezes, empregadores) referindo-se ao ajuizamento da ação como a apresentação de reclamo perante o “ministério do trabalho”. A confusão decorre do desconhecimento, pelo leigo e, mormente, pelo trabalhador de formação mais simples, da estrutura dos Poderes da República e dos limites de atuação de cada um dos órgãos que os compõem.


Para o homem comum,  o comparecimento perante a DRT (realmente Ministério do Trabalho) em nada se diferencia do comparecimento a Juízo, na medida em que nos dois casos esteve diante de autoridade que deve resguardar seus direitos. Dessa perspectiva, a figura do conciliador confunde-se com a da “autoridade”, aplicando nela o trabalhador suas esperanças e a certeza de que está, de alguma forma, tendo seus direitos protegidos, fiscalizados. Ora, se os conciliadores, então, declaram ser melhor o recebimento deste ou daquele valor, sob qualquer argumento, o peso de sua informação é, para o interlocutor, elevadíssimo. Resulta daí que a má utilização do mecanismo, com as ponderações, nem sempre exatas acerca das dificuldades de receber valor maior, pode implicar na criação de uma ‘comissão prévia de coação’.


IV.    Conseqüências nefastas.

O mau procedimento das comissões de conciliação prévia implica em prejuízo ao trabalhador, que se vê, a uma, desestimulado a buscar reparação para os danos causados em seu patrimônio (não só material, quanto moral) por violação às leis trabalhistas ou às disposições convencionais. Decresce a qualidade da cidadania, enfraquecendo-se, com isto, o povo, a comunidade, o Estado Democrático de Direito.
Tal como o corpo humano, a sociedade constrói-se por meio de liames de interdependência, de sorte que se qualquer dos componentes do sistema adoecer, sofre o todo, não só a parte. O desrespeito à integridade dos direitos trabalhistas traz a nefasta conseqüência de debilitar todo o tecido social.


Não é, no entanto, só esta a grave conseqüência ao desvio de uso do novel sistema de conciliação dos dissídios individuais trabalhistas. Outra perspectiva  da questão demonstra a má utilização do sistema vem a corroê-lo, destruindo sua credibilidade. A comunicação entre os interessados, a difusão entre os trabalhadores, da idéia de que o comparecimento à comissão de conciliação implica em arapuca, armadilha, em traiçoeira violação dos direitos perseguidos ou dos confessados e impagos, levará a pique a formulação legal, de nada valendo qualquer de seus preciosos termos, ou a extensão da eficácia liberatória do documento de ajuste.


Embora graves ambas as conseqüências, esta segunda mostra-se comprometedora da primeira tentativa de instauração de mecanismos de composição de conflitos trabalhistas sem que intervenção estatal. A prática perniciosa, o mau uso do instrumento, sua aplicação para aplacar dificuldades financeiras ou artimanhas de pagadores incorretos desperdiçará oportunidade histórica.


V.    Conclusões.

O crime tipificado no art 203 do código penal não é de prática exclusiva do empregador, podendo ser perpetrado por terceiros, desde que haja o dolo de provocar a frustração de direito trabalhista assegurado por lei ou por convenção coletiva. A participação das comissões de conciliação prévia em incentivo e condução a acordo que vise à fraude de direitos trabalhistas traz conseqüências graves, dentre as quais se evidenciam: a nulidade dos termos firmados que se encontrem maculados do referido desvio e a responsabilização criminal, pelo viés do art 203 do código penal, tanto dos empregadores que disto lançarem mão, quanto dos membros das comissões prévias.


Na hipótese, por atendimento ao artigo 40 do código de processo penal, vislumbro a necessidade de expedição, pelo Juiz Instrutor da reclamatória que tratar, ainda que incidentalmente, da nulidade de termos de conciliação formulados na forma da lei 9958, de ofício para noticiar o fato ao Ministério Público, a fim de formular-se denúncia.


Ter em conta a repercussão criminal dos atos praticados no cerne das comissões há de trazer a seus membros a gravidade da responsabilidade que assumem ao tomarem assento em organismo de relevância na pacificação social.



1 Juiz do Trabalho Substituto na Segunda Região, São Paulo, Professor de Direito Processual do Trabalho na FAAP e de Direito do Trabalho no Núcleo Mascaro e Mannrich, mestrando em direito do trabalho na Faculdade de Direito da USP e diretor cultural da AMATRA II e da ANAMATRA.
2 Outra não poder ser a conclusão a partir da leitura conciliada do artigo 625-D e de seu parágrafo 3º - C.L.T..
3 artigo 625-E, § único da C.L.T..
4 Manual de Comissão de Conciliação Prévia e Procedimento Sumaríssimo.
5 Artigo 203 do código penal brasileiro.
6 Silva Franco, Alberto et all – Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. RECLAMANTE, SP, 1990, 3ª edição, comentário ao artigo 203.
7 Lições de direito penal. José Bushatsky Editor, 1962, volume II, página 463.
LTR, SP, 2000, página 97.
8 RE em HC – publicada no  DJU em 1/9/78 página 6469, Relator Ministro Moreira Alves.

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