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É inamovível o juiz substituto?1
 



Marcos Neves Fava2

 

Não conheço qualquer ofício em que, mais do que no de juiz, se exija tão grande noção de vil dignidade, esse sentimento que manda procurar na própria consciência, mais do que nas ordens alheias, a justificação do modo de proceder, assumindo as respectivas responsabilidades.” 3
 

Embora hoje em dia a opinião pública venha sendo levada, pelos meios de comunicação, a confundir “garantias da magistratura” com “privilégios dos juízes”, é certo que as três garantias constantes do Texto Constitucional mostram-se essenciais ao exercício das funções do juiz, a saber: vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade. A Carta Política é clara ao instituí-las em seu artigo 95, incisos I, II e III.


Chamam-se garantias de independência4, eis que visam a promover julgamentos isentos de pressão, seja da sociedade organizada, seja dos interesses de grupos políticos ou econômicos, seja dos próprios órgãos jurisdicionais.


De notar que aquela disposição constitucional coloca condição, dentre as três garantias, a apenas uma delas, qual seja: a da vitaliciedade, que se adquire, no primeiro grau, “após dois anos de exercício”. Às demais não há óbice ou elemento restritivo, autorizando a conclusão de que são atribuídas ao magistrado desde a sua posse. Interpretação sistemática do texto impõe a conclusão de que mesmo o juiz não vitalício goza, desde a nomeação dos direitos de não ser removido e não ter seus vencimentos reduzidos.


Juiz substituto é o nome do cargo ocupado pelo magistrado, até sua promoção a titular, desde quando passa a responder pela presidência de determinada Vara. Antes da promoção a titular, o juiz substituto atende às convocações do Presidente do Tribunal, quer para substituir, quer para auxiliar, na área de jurisdição da Corte, de acordo com as necessidades do serviço.


Eis o cerne da questão: ao juiz substituto é garantida a inamovibilidade? Como se pode assegurar tal garantia, na prática?


Positiva é a resposta que se impõe à primeira das questões.


Como primeiro motivo, temos que aquilo que a lei não diferencia, não poderá fazê-lo nem o intérprete, nem o aplicador do texto legal. Quer a Constituição Federal, quer a LOMAN, quer o Regimento Interno do TRT, não diferenciam juiz substituto do Titular, para gozo da garantia em análise. Em especial a Lei Orgânica da Magistratura, em seu artigo 22, parágrafo segundo, prevê que “os juízes a que se refere o inciso II deste artigo (entre os quais se encontra a figura do juiz substituto), mesmo que não hajam adquirido a vitaliciedade, poderão praticar todos os atos reservados por lei aos juízes vitalícios”, tornando-se evidente a ausência de diferenciação entre titulares e substitutos.


A par desse motivo, traga-se outro, de natureza teleológica. Ora, se as garantias constitucionais do juiz têm por objetivo assegurar ao jurisdicionado julgamento independente, isto é, não sujeito às diversas forças conflitantes dos interesses sociais, econômicos e políticos, a tutela volta-se ao jurisdicionado, não ao juiz. Por isto, também a decisão proferida pelo Substituto precisa cercar-se dessa garantia. Do contrário, faz-se letra morta do Texto Maior, já que a princípio não se voltaria à proteção da sociedade, mas, tão somente, dos juízes titulares, o que se mostra absurdo.


Agrave-se tal situação, constatando-se, como estatisticamente ocorre em São Paulo, que, ao longo do ano, com a vacância de presidência das Varas, as convocações para substituição nos Tribunais e as férias, grande parte dos juízos trabalhistas fica entregue à responsabilidade de Substitutos. Vale dizer: por motivos conjunturais, passageiros, provisórios, não vigorará a garantia constitucional de um julgamento isento e independente, se a inamovibilidade não for assegurada aos substitutos.


Outros motivos há, ainda, para se conceber que ao Substituto seja atribuída a garantia constitucional da inamovibilidade.


Pensar que ao juiz não titular não se garanta o direito a não ser removido, equivale a concluir que, ao alvedrio da autoridade ou do órgão encarregado da designação dos juízes substitutos, estaria entregue a eficácia do princípio constitucional do juiz natural. Isto porque, por qualquer motivo, lícito ou não, justificável ou não, tal autoridade ou órgão poderia, livremente, movimentar os juízes substitutos, evitando que julgassem estas ou aquelas causas, ou, do contrário, possibilitando que a determinado juiz restasse a incumbência de julgamento de um ou outro processo.


Também a punição do juiz substituto, sem direito de defesa, sem instauração de sindicância, representação ou qualquer outro procedimento que assegure a investigação real dos fatos, poderia ser atingida por meio de “transferências”, remoções, novas e abruptas redesignações do juiz. Descontente com o proceder de certo magistrado, a autoridade ou o órgão competente para movimentar os substitutos, providenciaria sua imediata remoção, em grave malferimento ao princípio do due process of law (arraigado nos procedimentos disciplinares normatizados pelo artigo 29 da LC 35/79), além de ferimento de morte à garantia ora em discussão.


De tal absurda situação resultaria a figura impossível do juiz-com-medo. O patético perfil do magistrado que deixa de decidir conforme sua consciência, porque, a pedido dos prejudicados, pode ser “removido”, ou deixa de punir litigância de má fé, temendo ser raptado da comarca, ou da Vara, transferindo-se compulsoriamente a outro canto. O triste ser em que se transforma o juiz que não é independente. Calamandrei adverte, severamente, que “a independência dos juízes, isto é, aquele princípio institucional por força do qual, ao julgarem, se devem sentir desligados de qualquer subordinação hierárquica, é um privilégio duro, que impõe, a quem dele goza, a coragem de ficar só consigo mesmo, sem que se possa comodamente arranjar um esconderijo por detrás da ordem superior" 5


Os erros e desvios dos magistrados - titulares, substitutos, desembargadores ou ministros - devem ser seriamente tolhidos, mediante punição exemplar, dado o alto grau da responsabilidade que decorre do exercício de seus misteres. Isto não deve, no entanto, encontrar caminho na punição fácil e sem prévia instrução cognitiva dos fatos e possibilidade de exercício do direito de defesa. Errando o substituto, aplicam-se-lhe os mesmos encargos e se lhe são assegurados os mesmos meios de defesa e foro adequado para apuração dos fatos e conseqüente punição, que se atribuem ao titular. Nestes termos, a LOMAN, artigo 29 e seguintes.


Nenhum erro dos juízes, nenhum interesse, nenhuma pressão externa (ou interna) pode justificar o desrespeito à garantia de ser inamovível, assegurada aos Juízes - substitutos, inclusive - por mais graves ou poderosos que venham a ser esses fatores.


Como concatenar-se tal garantia com a dinâmica necessidade prática de movimentação dos substitutos? Simples: não se interrompendo as designações previamente atribuídas, salvo por cessação do motivo que as ensejou. O substituto designado a cobrir a ausência do titular convocado ao Tribunal, por exemplo, não deve ser “removido” da Vara, antes do retorno do colega do Segundo Grau. Aquele que cobre férias, antes do fim das mesmas. O que ocupa a Vara vaga, até que seja concluído o concurso de promoção ou remoção. Não é possível imaginar motivo de natureza administrativa, que autorize a remoção precoce de substitutos designados para presidirem Varas, sem configurado o retorno do titular. Isto porque a remoção do substituto “X” designado para a Vara “A”, implicará na designação de outro substituto para a mesma Vara. Numericamente, prevalece a mesma situação de necessidade administrativa anterior à transferência, desvestindo-se um santo com o cobertor tirado de outro, como ensina a sabedoria popular.


Mas a independência do magistrado, ainda que essencial ao exercício de sua função, exige vontade e coragem dos juízes, como bem alerta o professor Dalmo de Abreu Dallari: “É preciso que os juízes queiram ser independentes e trabalhem para isto. Na realidade, as transigências freqüentes, a renúncia aos seus valores próprios, a tolerância com a violência e a arbitrariedade, aceitação das “razões de Estado”, a adoção de teses que implicam a negação de convicções solenemente proclamadas, tudo isso, que tem estado presente no comportamento da magistratura como instituição, permite a suposição de que na realidade a magistratura não quer ser independente”.6


A séria função da judicatura exige dos juízes total independência, o que nasce no cerne da convicção de cada um, mas também depende da cooperação de fatores externos, como a observância às garantias constitucionais por parte dos poderes instituídos, dentro e fora do Judiciário.


E preciso acreditar, diariamente, que tais garantias são asseguradas a todos os magistrados, para se poder envergar a toga, presidindo audiências e prolatando decisões, quer como substituto, quer como titular.


São estas linhas, sem qualquer pretensão de esgotamento, convite à reflexão e ao debate do tema, pelo aperfeiçoamento da magistratura.


1 Originalmente publicado no Jornal Magistratura & Trabalho, nº 34, novembro de 1999.
2 Juiz do Trabalho Substituto em São Paulo(2ª Região), diretor cultural da Associação dos Magistrados do Trabalho da Segunda Região e mestrando em direito do trabalho pela Faculdade de Direito da USP.
3 Piero Calamandrei - in Eles os juízes vistos por nós os advogados, apud Dalmo de Abreu Dallari, O poder dos Juízes, Saraiva, 1996, página 59.
4 Curso de Direito Constitucional. Manoel Gonçalves Ferreira Filho - Saraiva, 1987, páginas 244/45
5 Calamandrei, apud Dallari, op cit, página 59.
6 Dalmo Dallari, idem ibdem.

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